domingo, 27 de dezembro de 2009

Acuso // Sobre a acusação a Pablo Picasso - Jaime Valente e Sílvia Mota







ACUSO!
Jaime Valente


Fui convidado para acusar Picasso!
Numa sala nua cadeiras ao acaso
equilibram-se numa só perna
o juiz-presidente sorri
com um olho na mão
um pé na orelha atenta
o juiz sorri sorrisos na testa...

Acuso Picasso!
(como me sinto bem
na pele do promotor!)
Acuso Picasso de promover a fome
de desvendar o mistério
a angústia
o medo!...
Acuso Picasso de plagiar
as obras-primas dos fazedores de guerras!
Eis as provas:
A fome campeia foice no ombro
e Picasso prende em seus quadros
frutos
presuntos
bons vinhos!...
A fome ceifa crianças obesas
e Torta tem “seiscentos litros de leite
nas suas maminhas de porca!...

Os povos gemem medo e angústia
e escondem o seu tormento nas máscaras vãs
onde Picasso penetra a golpes de pincel
e agride com cubos
cones
esferas!...
“Eu não procuro, acho.”
Senhores!
Picasso não procura
mas quando encontra
retalha
espreme
desnuda
desprotege a humanidade
retira-lhe o covil-refúgio
e faz-se espelho de cruas verdades!
Picasso não procura
mas quando encontra o Homem
pesquisa a amargura
a frustração
o ódio
em “fase azul”
“cubismo” (analítico ou não)
“papiers-collés”
e abre-lhe o ventre na litografia
viola a inocente argila
esculpe
fere
chicoteia e retorce o ferro!...

Nem a ti, Guernica, Picasso poupou!...
O povo escreveu no próprio corpo
o teu drama
a epopéia do teu sangue
e Picasso plagiou com seus pinceis tão trágica obra!
Porquê, Guernica?!
Porquê tal blasfêmia, Cidade Sagrada?!
Eis, senhores, o crime maior:
- Guernica!
Quanto suor, quanto sangue
derramado na construção
dessa monumental tragédia
desse tão sublime drama!
Guernica, Guernica! Que vergonha!...
Picasso despiu teus seios!
Picasso desnudou tua alma
e fez-la presente na memória
sempre multiplicada da tela!...



SOBRE A ACUSAÇÃO A PABLO PICASSO
Sílvia Mota


Jaime Valente, leio e releio teu poema “Acuso!” É, indiscutivelmente, uma construção inteligente nascida dos meandros da tua mente culta e sadia.

Permita-me a honra e a audácia de dialogar contigo a respeito dessa obra, cuja temática diz respeito à “acusação poética” de Pablo Picasso, talvez, o mais polêmico artista plástico da contemporaneidade.

Como bem o disseste nos teus versos, Pablo Picasso enveredou-se por todas as sinuosas veredas das artes plásticas: pintura, escultura, cerâmica, cenografia, gravura e desenho. As transformações sucessivas das suas obras constituem-se num dos mais interessantes processos criativos desenvolvidos por um artista. O registro das inúmeras fases do trabalho levadas a termo por diversos outros artífices, tem por finalidade relembrar ao criador, de quando em quando, a relevância de se retomar as origens do processo criativo, com a singeleza de uma criança que, a cada dia, brinca de forma diferente com o mais querido brinquedo. Particularmente, apaixono-me por tudo isto, porque minha criatividade passeia pelos mesmos caminhos, seja no concernente à pintura, à poesia, à música ou pelos campos da ciência jurídica. Os estudos de Picasso permanecem vivos, como fontes de estudo para a discussão da arte como forma de mobilização social, de denúncia e, mais além, assumem a validade de documentos históricos.

No ápice do poema em epígrafe permites que tuas palavras desaguem na tela da controversa “Guernica”.

Pelo que se conta, Picasso nunca conheceu Guernica, a não ser por imagens exibidas pela televisão francesa poucos dias depois do massacre ocorrido em 26 de abril de 1937, quando foi a cidade canhoneada pela “Legião Condor” do Exército Alemão. Encontrando-se os homens da cidade na frente de combate, as vítimas da pusilânime agressão foram as mulheres e as crianças. No mesmo ano, mensageiros da frente popular confiaram ao artista a missão de criar uma obra para adornar o stand espanhol durante a Exposition Internationale des Arts et Techniques dans la vie Moderne, de Paris. Pelo título do evento depreende-se o culto aos avanços científicos e tecnológicos, mas não se pode ignorar o objetivo de informar ao mundo, através do pavilhão da Espanha, as agruras do povo espanhol às sequelas da guerra, além do alerta à sociedade internacional contra as ameaças do regime fascista. Tão somente seis semanas foram suficientes para que Picasso criasse a emblemática pintura que traduz um dos maiores protestos artísticos contra a guerra - “Guernica”. A partir da frase citada no teu poema: “Eu não procuro, acho!” (também referida por Lacan no Seminário XI ao abordar o complexo mote das afinidades entre psicanálise e ciência), pode-se dizer que Picasso achou e extraiu de uma tela casta uma virgindade colorida de branco, negro e cinza, donde fez sangrar todo o negrume e toda a malvadez do pensamento humano.

Nas linhas do teu poema, acusas Picasso!!!
Ninguém, nem mesmo um poeta do teu jaez poderia jamais realizar esta proeza sem conhecer, ao menos, parte da vida e da arte deste homem-artista. E, decifro isto nos teus versos. Aliás, decodifico a obra de Picasso a cada palavra nascida da tua poética eloquente. O canto encanto do "promotor" ganha força a cada espaço conquistado na tela do computador, que desbravo ávida, por saber aonde vai parar tudo isso. Desde os primeiros versos as descrições dos ambientes e dos sujeitos envolvidos desnudam Picasso, parte a parte, obra a obra. Passas pelos cubos, tropeças nos cones e te entregas às esferas e às “fases azuis”... Tudo, tudo percebes nos mínimos detalhes. Agente de acusação, ideal!

Em determinado momento, dedo em riste, acusas Picasso de plagiador!
A este respeito dissera alguém um dia, que os pintores são plagiadores da realidade. Será este um argumento viril? Dirão outros, como o pintor Paul Gauguin: “Um artista é um revolucionário, ou um plagiador!” Fico com estes. Picasso é artista revolucionário! Transcende as regras, mas não as transgride. Posso ouvi-lo a dizer: “Copiar a si mesmo é mais perigoso que copiar os outros. Leva à esterilidade.” Essa rigorosidade consigo mesmo é fruto da sua formação artística, pois desde pequenino, literalmente, acompanhado pelo pai, aprende que para destruir o "comum" é necessário a priori compreender as técnicas da sua edificação. E a elas se entrega de corpo e alma, sem medo de se aprisionar. Constrói e destrói, ato contínuo. Sua mente artística é livre de quaisquer grilhões e os grilhões que intenta nas suas telas demonstram a precisão da liberdade.

Acusas Picasso e, passo a passo, chegas à obra-prima: Guernica!
Ao descrevê-la ou interpretá-la, nas tuas linhas, a personalidade artística do pintor imiscui-se à personalidade humana. Claro! Não poderias perder esta oportunidade ímpar! A arrogância intelectual de Picasso, sua genialidade artística e vaidade masculina, aliadas ao desejo de "espicaçar" as dores humanas, podem torná-lo um violador dos sentimentos dúbios ou múltiplos dos seres humanos. Mas, aos olhos de quem estuda o processo formador da sua linguagem pictórica, Picasso agride através dos golpes dos seus pincéis porque a fome, o sofrimento e as máscaras malditas utilizadas pelos indivíduos agridem o princípio de respeito ao próximo. Picasso retalha, espreme e desnuda as dores e os pudores da humanidade, porque a hipocrisia ameaça tomar conta dos atos humanos. E, pelo menos, na sua obra ele a retém, num sobreaviso!

Alcançado este momento tracejas a verdadeira face do pintor, ou do gênio, propriamente dito! Acusas assim o “devasso plagiador” da trágica realidade:

“- Guernica!
Quanto suor, quanto sangue
derramado na construção
dessa monumental tragédia
desse tão sublime drama!
Guernica, Guernica! Que vergonha!...
Picasso despiu teus seios! [...]”

Não obstante, quando multiplicas a alma de Guernica através da mágica memória da tela, revelas a tensão criadora que oscila entre o bem e o mal; e gritas ao mundo o desígnio finalístico do criador - a imortalidade da própria criação, ao permitir que a mesma se recrie a cada novo olhar:

“Guernica! [...]
PICASSO DESNUDOU TUA ALMA
E FEZ-LA PRESENTE NA MEMÓRIA
SEMPRE MULTIPLICADA DA TELA!...”

Expões, nas entrelinhas, teu maior argumento de acusação ao HOMEM PICASSO - a vaidade humana, que pode ser lida também na sua célebre frase: “Cansei-me de ser moderno. Quero ser eterno!” Parabéns, promotor! Mas, piedoso que és, sob minha visão apaixonada de mulher artista, pintora e também jurista – se o acusas, ao mesmo tempo transmutas toda a beleza do teu ser poeta à defesa do PINTOR PICASSO, pois ao desvendá-lo por inteiro – finalizaste-o imortal ao fulgor da sua própria obra.

Jaime Valente, querido e nobre poeta, teu poema é um SHOW, ao qual não resisti expor meu pensamento!
Beijosssssssssssssssssssssssss






Sílvia Mota Poeta e Escritora do Amor e da Paz
Cabo Frio, 11 de dezembro de 2009 - 00h52

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